terça-feira, 23 de dezembro de 2008

DOM CASMURRO: ENTENDIDO?



E BEM, E O RESTO?
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Didático. Linear. Assim pode se resumir a adaptação de Luiz Fernando Carvalho do livro Dom Casmurro para as telas da Globo. Tal qual ao livro, o diretor vai contando, parte a parte, o desenrolar da história. Com um apresentador que faz lembrar Cid Moreira (senão ele próprio) apresentando os mistérios de Mister “M”, dividindo quadro por quadro, para talvez, facilitar a vida de quem não leu a obra. Como não poderia deixar de ser, o livro em relação à microssérie, como em tantas outras adaptações, mostra-se bem melhor que o produto televisivo. Não que isso seja um demérito para o diretor. Mas, assistindo-o desta maneira, faz lembrar dos professores que nos obrigam a lê-lo, mesmo quando ainda não estamos pronto.
Poderia-se ousar mais? Sim, o diretor é fiel a ponto de colocar as páginas do livro na tela, deixar o narrador da história, Dom Casmurro, ditar palavra por palavra, ipsis litteris. Não há a releitura da obra, a desconstrução que a transformaria num digno seriado, sem no entanto, privar-se de dizer a mesma coisa. As opções são várias, mas talvez, quis o diretor não complicar, para passar a mensagem que, com certeza, era a que mais lhe incomodava: Dom Casmurro era na verdade, amante de Escobar! Já que assim optou sigamos a mesma linha didática para explicar melhor a afirmação, sem no entanto, nos atermos à linearidade.

UM SEMINARISTA
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Eis a tese: por muitos anos se discutiu se Capitu havia traído Bentinho com Escobar ou se tudo não passava de um ciúme tresloucado do protagonista. Ninguém havia parado para pensar na hipótese inversa, ou seja, na possibilidade de Bentinho e Escobar, ambos, ex-seminaristas, terem começado a se relacionar nos porões de uma instituição chamada seminário, conhecida por muitos, como ambiente propício a relacionamentos homossexuais, devido, claro, a convivência diária de meninos que se encontram à flor do despertar adolescente, naquele justo momento em que, ávidos por conhecer os mistérios do sexo, são obrigados a conviver com semelhantes.
Luiz Fernando Carvalho não poderia deixar passar este senão: dirigi os atores, de modo a fazer com que eles mostrem ao público um prazer acima do normal em se conhecerem, faz questão de colocar na íntegra o fim do capítulo 56 que mais dignifica a tese em questão: “não sei o que era a minha. Eu não era ainda casmurro, nem Dom Casmurro; o receio é que me tolhia a franqueza, mas como as portas não tinham chaves nem fechaduras, bastava empurra-las, e Escobar empurrou-as e entrou. Cá o achei dentro, cá ficou, até que...”
Lembremos de Cid Moreira: “Eis o mistério”. O que quer dizer o narrador com isso? Receio de quê? Que metáfora é essa sobre portas que não tem chaves nem fechaduras? Bentinho o achou dentro de onde e Escobar ficou em que lugar?
Vejamos no mesmo capítulo como o narrador descreve a visão do amigo: “era um rapaz esbelto, olhos claros, um pouco fugitivos, como as mãos, como os pés, como a fala, como tudo. Quem não estivesse acostumado com ele podia-se acaso sentir-se mal, não sabendo por onde lhe pegasse”.
Quem entre nós que, ao descrever outro homem desta forma, fica imune de chacotas e julgamentos?


VISITA DE ESCOBAR
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Analisemos este capítulo: quem assistiu a microssérie talvez se lembrará. É o típico jantar preparado para apresentar o namorado a família. O diretor, também neste, não deixou escapar a clareza da narrativa de Casmurro. Façamos como ele: vamos ao livro.
Bentinho chega da missa e lá está Escobar alegando fazer uma visita à mãe do protagonista. Machado de Assis constrói o diálogo de forma ambígua como se Escobar estivesse perguntando da mãe. Mas transcrevamos o diálogo para melhor entendermos:
- Tive receio, disse ele.
- Os outros souberam?
- Parece que sim: alguns souberam.
Logo depois se muda a conversa para outros assuntos, Bentinho vai apresentando o enamorado a cada um da família. Mas uma vez Dom Casmurro volta a encontrar nele outras qualidades não vistas antes até que ao apresentar a prima Justina, essa percebe no rapaz algo antes não observado pelos moradores, sem que no entanto, diga isso a Bentinho.
Ao se despedir Bentinho demora-se com Escobar na ânsia de que, ao entrar no ônibus, volte os olhos para ele. Capitu assiste à cena e logo depois o questiona sobre quem seria o tal amigo.
Quem assistiu a microssérie deverá recordar dos olhares trocados pela casa, do desejo que estavam um e outro de se abraçarem e não poder, tal qual ao reencontro dos protagonistas de Brokeback Mountain. Evidente, o diretor não poderia ousar tanto, melhor fez, respeitou a obra, foi-lhe fiel, como já vinha sendo, a narrativa retirada do livro, tudo, até que no capítulo que analisaremos a seguir, não suportou a fidelidade e colocou na boca do personagem, palavras que melhor traduziriam sua intenção.

O REGRESSO
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O meu amante de minha mulher. Não há leitor, faço questão de lhe convidar, vá até o livro, está na sua estante ou na internet, não há neste capítulo esta fala, releia-o, ou leia-o, verá com próprios olhos o que lhe digo, Bentinho jamais se refere dessa forma ao filho que entra pela casa depois de passar algum tempo na Europa.
Dom Casmurro o retrata como fez o diretor, é o mesmo Escobar, é sem dúvida o amigo que morreu, inteiro, “um pouco mais baixo, menos cheio de corpo” era pelas palavras do narrador, seu próprio comborço.
Mas “o meu amante de minha mulher”, ultrapassou, dignificou a releitura, parabéns diretor, resolveu ousar para deixar claro aquilo que pretendia. Não se sinta culpado, é uma tese, um tanto quanto em desuso, mas uma tese que compartilho. Vamos as evidências.



UM FILHO
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Afinal, Bentinho não podia ter filho ou não queria ter um filho? Para se gerar um homem ou uma mulher, desde a suprema criação, sempre foi necessária a ação, seja ela divina ou da cópula. Bentinho copulava? Talvez a enorme dificuldade para se gerar o rebento viesse daí. Escobar já tinha sua criança, talvez então o próprio Bentinho tenha lhe pedido o serviço, tudo, claro, com consentimento de ambos.
Só para terminar, vamos ao nome da criança: Ezequiel. O leitor mais atento reparará em uma coisa: Ezequiel é tão somente o primeiro nome de Escobar. Justa homenagem a quem se presta a tão digno ato. Enfim partamos para o desespero da perda.

A XICARA DE CAFÉ
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Em seu grande desespero pela perda, Bentinho compra o veneno que poderá, segundo sua crença, fazer com que se encontre com o amado. A afirmativa acima procede. A narrativa machadiana trás para a história Catão de Utica, herói romano defensor da liberdade e do senado contra César. Dom Casmurro não fala sobre o livro que Catão leu antes de morrer, fala apenas que leu um livro de Platão.
Fédon. Este é o livro, um dos diálogos de Platão, que o herói romano lê antes de se suicidar. Mas o que diz esse diálogo que faz com que Catão tenha coragem de cometer tal ato? Fédon é um dos discípulos que dialoga com Sócrates antes dele morrer. Numa determinada hora da conversa, Sócrates diz a ele que não teme a morte, pois acredita que irá encontrar em Hades, as pessoas que gosta. Em suma, analisando sob outro ângulo, Bentinho pode ter se referido a Fédon momentos antes de querer suicidar na esperança de que fosse encontrar com Escobar.
Na dúvida se cometeria tal ato, Dom Casmurro assim narra: “...a fotografia de Escobar deu-me o ânimo que ia me faltando; lá estava ele, com mão nas costas da cadeira, a olhar ao longe...”
Sejamos honestos com o diretor. Absolutamente em nada, ele construiu suas cenas com intenção de passar ao espectador todo o sofrimento de Bentinho pela perda do amado. Talvez não tenha lido a obra com a atenção devida. Seja qual for o motivo isto não foi demonstrado.

UMA CONCLUSÃO
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Não se meta a procurar no livro por este capítulo, caro leitor. Em toda tese há uma conclusão. É didático. Essa é a minha.
Machado de Assis, com toda genialidade que lhe era peculiar, fez com que se discutisse por mais de um século sobre a traição de Capitu sobre Bentinho, quando na verdade, só a partir do momento em que nos pusemos a analisar o inverso, descobrimos a verdadeira traição. Pequenos detalhes, brincadeiras do autor, comum aos gênios, para enriquecer ainda mais sua obra.
É uma tese. Sim, e o diretor fez questão de enfatiza-la, ainda que veladamente. Pinçou, deu toques, os olhares dos amantes falavam por si. Colocou na boca de Bentinho, diálogos não constantes do livro.
Se acertou ou não o mundo literário um dia poderá dizer. Ainda é cedo para as repercussões acadêmicas. Mas de tudo, melhor teria sido se colocasse ao fim o apresentador Cid Moreira (ou seu semelhante) a dizer em alto e bom som:
“EIS O GRANDE MISTÉRIO DE DOM CASMURRO”.
Seria, pois, um gran finale.